domingo, 26 de julho de 2015

RICARDO III


Confesso aqui aos meus leitores que passei muito tempo sem conseguir ler William Shakespeare (1564-1616). Sua intrincada verborragia e maneirismos dificultam o entendimento da obra que já foi traduzida por inúmeros profissionais, algumas de forma bem tosca, excluído passagens e reduzindo o número de páginas para tornar a leitura mais “fácil”. Só esqueceram de avisar o autor do corte na sua obra, até porque ele já tinha morrido. E quem lhes deu esse direito, quem autorizou a exclusão de passagens de um livro durante a tradução do mesmo? Como não sei ler em inglês para aventurar-me nos escritos originais, a obra desse autor tão celebrado ficava sempre para mais tarde, até que descobri o teatro.

Então cabe outra confissão aos meus leitores, foi o teatro que me ajudou a entender e me aproximou desse legado. Primeiro um Romeu e Julieta montado pelo Grupo Galpão que assisti na década de noventa do século passado no Teatro Castro Alves. Depois tive a oportunidade de assistir ao saudoso Raul Cortez interpretando Rei Lear quando já morava em São Paulo, lugar onde também iria assistir uma montagem de Ricardo III com Marco Ricca no papel principal e posteriormente uma excelente encenação de Hamlet, cuja interpretação visceral de Wagner Moura dividiu opiniões.

Guardo lembranças marcantes de todas essas montagens, em especial de Ricardo III cuja tradução e adaptação da obra foram feitas pelo Jô Soares, e na saída do teatro eu comprei o livro com o texto da peça na versão encenada. Após a leitura dessa versão feita para o teatro fiquei tão fascinado pelo personagem exagerado na sua feiura e maldade pessoal, carregado de ressentimentos e ódios à flor da pele, que faria de tudo para ocupar o lugar de Rei, fui buscar o livro, com a tradução de Ana Amélia Carneiro de Mendonça, para beber mais na fonte do autor, celebre pelos seus famosos duelos verbais.

William Shakespeare continuará a ser lido, encenado, filmado, para todo o sempre. Suas obras são imortais e vão passar por inúmeras gerações. Muitas vezes a leitura não será por si capaz de nos dar imaginação suficiente para sua imediata e completa visualização ou compreensão, por isso, talvez, será necessário que usemos os diretores de teatro e cinema como ponte para chegar ao deleite de suas palavras. Mas não se engane, serão visões dos diretores que você estará assistindo, a sua compreensão íntima só virá quando você fechar a última página da leitura de um livro bem traduzido.

Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Palacete das Artes - Museu - Banco lateral do jardim
Data: 29/08/2015

domingo, 19 de julho de 2015

A MENINA DO FIM DA RUA


Em 1988 assisti Jodie Foster em atuação brilhante no filme ‘Acusados’ que lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz. Mais tarde, em 1991, ela ganharia outro Oscar pelo filme ‘O Silêncio dos Inocentes’. Quando morei em São Paulo pude assistir uma mostra de filmes da atriz que incluía um filme de desempenho marcante, quando ela tinha apenas 14 anos, chamado ‘The Little Girl Who Lives Down The Lane’, que no Brasil foi traduzido para A Menina do Fim da Rua. Na minha modestíssima opinião o filme é ruim, mas tinha ali o talento inegável da atriz que interpretava o personagem principal. Foi nessa época que me lembrei do livro publicado pela editora Abril, na série Grandes Sucessos, que estava na estante aguardando pela leitura há bastante tempo.

Resgatado da condição de “um dia vou ler” o livro escrito por Laird Koening (1927) foi uma agradável surpresa. Apesar de seu autor ser também o responsável pelo roteiro do filme, o livro é muito mais interessante e rico em detalhes que sustentam a personalidade de Rynn Jacobs, a garota que supostamente mora com o pai na casa do fim da rua. É claro que há na obra, livro e filme, uma inspiração óbvia em Psicose do gênio Alfred Hitchcock.

Rynn é uma garota que esconde a história dos seus pais e tenta seguir uma vida normal. Se não fosse a curiosidade dos vizinhos, principalmente a Sra. Hallet, o segredo do porão nunca seria desvendado. Rynn conhece o jovem Mario num situação de pânico e ele torna-se seu principal aliado contra a desconfiança do diretor da escola que insiste em conhecer o pai da garota e as investidas de Frank, filho da Sra. Hallet, que a intimida por favores sexuais após descobrir seu passado.

A Menina do Fim da Rua não é um livro essencial, e, que eu saiba, jamais esteve nas listas de livros que você deve ler antes de morrer. Entretanto é uma obra bem construída que garante uma boa dose de suspense até as últimas linhas.

Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Banco na praça em frente ao Porto da Barra
Data: 29/08/2015

domingo, 12 de julho de 2015

MORTE SÚBITA


O que fazer após o estrondoso sucesso de Harry Potter? Escrever mais sobre o universo Harry Potter? J. R. Rowling (1965) bem que tentou escrever livros correlacionados ao mundo do menino bruxo, mas ainda estava no meio da saga e essas publicações passaram quase que despercebidas na linha editorial, afinal, o que os fãs queriam saber era como Harry derrotaria do temido Lord Voldemort. Após a conclusão da saga e os direitos vendidos instantaneamente para o cinema, a autora bem que tentou continuar a escrever sobre assuntos que giravam em torno da escola de Hogwarts lançando através do site capítulos com explicações e mais detalhes sobre o Ministério da Magia ou o Quadribol, obteve relativo sucesso mas nada que fosse espetacular.

Ao publicar Morte Súbita a intenção era enveredar pela literatura para adultos, mas foi recebida com descrédito pela crítica e o público não “comprou” a obra. Escrevi a palavra entre aspas porque quero imprimir um duplo sentido, o do verbo comprar propriamente dito e a compra com significado de acreditar no talento da autora. Nesse sentido me incluo na massa manobrada por críticas e resenhas publicadas pelos ditos especialistas. Entretanto sou um curioso nato no que diz respeito às coisas e ter opinião própria sobre tudo faz parte da minha personalidade desde que ouvi a música Metamorfose Ambulante do Raul Seixas.

Para ler Morte Súbita você tem que perseverar, a edição que pretendo abandonar possui 652 páginas. Confesso que já tinha lido mais de 300 e ainda estava meio perdido com a história, os personagens e os diversos núcleos que envolviam a cidade de Pagford. Tudo girava em torno da vaga aberta no conselho da cidade após a morte do professor Barry Fairbrother. A aparência idílica do vilarejo esconde uma guerra de ricos contra pobres, filhos com os pais, esposas com os maridos e moradores de bairros nobres contra a periferia. Barry nasceu na periferia e venceu graças aos estudos na escola de Pagford, desejava isso para todas as crianças e era ferrenho lutador pela expansão dos direitos a todos. Os moradores tradicionalistas esbravejam e culpam a periferia pelas drogas, a prostituição, e o dinheiro dos impostos de Pagford revertidos para clínicas de reabilitação e ajuda financeira aos ‘desocupados’.

Não nego que sou fã da saga Harry Potter, acho que a criação daquele universo tão rico em detalhes e sofisticada trama só poderia vir de uma cabeça privilegiada. A autora J. R. Rowling continua com essa verve, ela constrói outra cidade, dá vida a um número considerável de personagens, cria uma trama que se torna instigante com o avançar das páginas, com humor e revelações inesperadas, tudo no ponto certo para a construção da personalidade de cada personagem, todos, sem exceção, sempre cheios de ambivalências. Agora estou curioso para saber se você vai “comprar” meu depoimento.

Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Ponto de ônibus do Porto da Barra
Data: 29/08/2015

domingo, 5 de julho de 2015

INFÂNCIA DOS MORTOS


Engana-se quem acha que o livro Infância dos Mortos, escrito pelo José Louzeiro (1932), é a mesma coisa que o filme Pixote, dirigido pelo Hector Babenco, que arrebatou inúmeros prêmios nos idos anos 80 do século passado. Essa confusão nasceu porque o livro serviu de argumento para o filme e a editora, ávida por vendas, passou a incluir o subtítulo Pixote nas edições posteriores ao filme. (veja a foto ilustrativa do livro)

Nas duas obras, a literária e a cinematográfica, a história é baseada em um grupo de meninos que abandonaram suas famílias para viver nas ruas sem estudo ou perspectiva de vida, e suas infâncias serão marcadas pela violência, drogas e crimes. O grupo é nômade, os garotos vivem pelas ruas sem saber onde vão dormir ou o que vão comer, são usados pelos traficantes e violentados pela sociedade que só os enxerga quando eles lhes roubam os pertences. Em um dado momento até pensam em mudar de vida, mas a realidade é dura e a lei da rua ensina que para ser forte e respeitado tem que se tornar conhecido no mundo do crime.

Os quatro meninos: Dito, Fumaça, Manguito e Pixote se conhecem nas ruas e são unidos pela lei da sobrevivência. Diferente do filme que usa o Pixote como foco de atenção por ser o menor deles, tem apenas nove anos de idade quando foge para as ruas, o personagem principal do livro é Dito, o mais velho. É ele quem dita às regras no grupo, quem decide o golpe que será aplicado, quem transita entre os traficantes, quem entra de verdade em confronto com a polícia e decide quem deve matar ou morrer. Por ser o mais forte é também o protetor dos outros, e em muitas ocasiões do livro percebemos ser o mais sensato, vai acompanhando as histórias de todos até se ver sozinho, lutando para sobreviver.

José Louzeiro é o primeiro escritor nacional a enveredar-se pelo gênero literário chamado de romance-reportagem, criado pelo Truman Capote quando escreveu A Sague Frio em 1965. Apesar de Pixote ter apenas uma pequena participação no livro, a reverberação do personagem transposto para as telas de cinema marcaria para sempre a carreira de Marília Pêra, lembrada até hoje pela atuação excepcional, e a vida do garoto Fernando da Silva Ramos, o Pixote, que não conseguiu seguir com a carreira de ator, entrou para o mundo do crime e acabou morto pela polícia em 1987. Posteriormente a esposa de Fernando, Cida Venâncio, lançaria o livro Pixote Nunca Mais, que deu origem ao filme Quem Matou Pixote? dirigido por José Joffily. Mas isso já é uma outra história.

Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Praça N. S. da Luz - Pituba
Data: 15/08/2015