Com a pausa para reflexão na semana passada hoje vou
escrever sobre um livro complexo, um livro que demorei muito para ler, não
porque tivesse muitas páginas, mas porque sofri muito enquanto lia. Por
diversas vezes dei uma pausa e li outro livro mais ameno para compensar o
estarrecer e a dor que me fazia fechar o livro no fim de uma determinada descrição
e pensar na minha vida. O grande José Saramago (1922-2010) tem essa capacidade
de me fazer sofrer, chorar durante a leitura e querer parar ao invés de
continuar. Seu estilo de escrita fluente que mistura a forma direta com a
indireta na estética, o pouco uso de parágrafos, travessão e aspas, nesse
livro não há personagens com nomes.
O início de tudo parece ficção científica, mas depois
veremos que Saramago vai muito além de explicações plausíveis ou de mera
ficção. O primeiro caso da “treva branca” manifesta-se num motorista no meio do
trânsito, depois vai se espalhando indiscriminadamente por quem tem contato com
o primeiro cego e logo o governo anuncia uma epidemia. Levam os infectados para
uma espécie de campo de concentração, é lá que uma nova sociedade se formará e
o humano dará lugar ao primitivo. Nesse mundo apenas uma mulher, a mulher do
médico, misteriosamente não infectada e que tudo vê, presencia e enfrenta os
horrores que seremos cúmplices na obra: poder, obediência, ganância, carinho,
desejo, vergonha, lutas entre grupos dominadores e dominados, compaixão pelos
doentes e velhos, violência bárbara e gratuita, abuso sexual e mortes, o ser
primitivo e seus piores instintos de sobrevivência.
A mulher do médico, que tudo vê mas finge-se de cega para ficar
perto do marido, descobre que não há mais guardas, que toda a cidade está
deserta e os homens primitivos sobrevivem vagando como nômades. Fugindo de um
grupo de cegos que monopoliza a escassa comida e subjuga os famintos por
favores sexuais, ela guia o marido médico, o primeiro cego, a mulher do
primeiro cego e a rapariga de óculos escuros pela cidade abandonada, depara-se
com cadáveres espalhados pelas ruas, incêndios, supermercados saqueados e, ao
entrar numa igreja percebe que todos os santos estão vendados, o autor nos diz:
“se os céus não veem, que ninguém veja...”
Ao concluir a leitura desse livro que durou mais de seis
meses, percebi o quanto é urgente que resgatemos nossa lucidez, o afeto, a
ética, honestidade e responsabilidade sobre o que fazemos. Nesses tempos de
grandes escândalos que desvendam muita corrupção percebo que alguma coisa se
perdeu e aí cito novamente o mestre Saramago: “uma coisa que não tem nome, essa
coisa é o que somos”.
Existe uma boa versão do livro adaptada para o cinema em
2008 e dirigida pelo Fernando Meireles, recomendo somente ver o filme despois
de ler o livro. Só assim você perceberá a dimensão do trabalho do autor e como o
Fernando Meireles conseguiu traduzir tanto sentimento.
Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Ponto de Ônibus - Av. Oceânica em frente ao Hotel Othon
Data: 28/02/2015