domingo, 8 de maio de 2016

DOROTÉIA


Muitos anos já se passaram desde que assisti pela primeira vez à peça Dorotéia, escrita em 1949 pelo lendário Nelson Rodrigues (1912-1980), e lembro muito bem que na última montagem que vi em São Paulo todos os papéis eram interpretados por homens e a única mulher em cena era a personagem principal: Dorotéia. Entre as apresentações da obra no teatro e a leitura em livro existe uma enorme diferença. Nos palcos vi a encenação dos diretores e a leitura da obra foi entre o autor e eu, isso me fez compreender coisas que passaram despercebidas nas versões para os palcos.

Ainda hoje acho a obra de Nelson Rodrigues genial, consegui assistir a montagens de quase todas as suas obras para o teatro, algumas eu vi também em filmes e na TV com boas adaptações, mas a leitura física das obras desse autor é muito enriquecedora. Sua capacidade de esmiuçar o cotidiano suburbano da classe média e expor as mazelas, preconceitos e sexualidades fora das quatro paredes do quarto de certa forma fez o público debater-se entre a curiosidade e a aversão. Em se tratando de Dorotéia essa aversão ficou nítida e seus críticos mais vorazes afiaram as garras para desmerecê-la.

Com a morte do seu filho Dorotéia pede abrigo na casa das primas: D. Flávia, Carmelita e Maura, três viúvas puritanas e feias, todas acometidas pela sina que as mulheres da família devem ter: a náusea sentida em sua noite de núpcias que às fará renegar o sexo para sempre, e a falta de visão do masculino já que nenhuma delas é capaz de ver um homem. Dorotéia é o oposto de tudo isso, de uma beleza exuberante ela não sente a náusea pelo sexo ou a falta de visão do masculino e por isso é tratada como prostituta. Para ser aceita na casa ela deve enfeiar-se e renegar a vida passada. Todas devem padecer do mesmo mal que evoca o sexo, a culpa e a morte, e todas se vigiam e serão vigiadas, principalmente por D. Flávia que é a mais velha e a única a ser chamada de Dona. Elas vivem numa casa que não possui quartos, só salas, impossibilitando a intimidade, os segredos de alcova, o amor e a sexualidade.

D. FLÁVIA - Porque é no quarto que a carne e a alma se perdem... Esta casa só tem salas e nenhum quarto, nenhum leito... Só nos deitamos no chão frio do assoalho...

Passados muitos anos desde a morte de Nelson Rodrigues costumo pensar que, se vivo fosse, ainda teria a capacidade de chocar as pessoas com seus escritos. Eu, na minha mais humilde opinião, acredito que não. Mudaram os costumes, embora a hipocrisia permaneça, a internet nos brinda com novidades diárias e, para mim, o ataque às Torres Gêmeas em 2001 vai ser difícil de ser superado.

Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Praça do Campo Grande - Banco perto do parquinho.
Data: 04/06/2016

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