Lembro perfeitamente do dia, eu estava sentado na escada que
ligava o pátio antigo ao novo do Colégio Dois de Julho quando minha professora
de português e redação passou dirigindo-se à sala que nos daria mais uma aula e,
percebendo o livro que eu lia, perguntou: “Você está entendendo o conteúdo
desse livro?”. Eu fiquei envergonhado, era um livro difícil para meus dezoito
anos, várias vezes eu tinha que reler algumas passagens para entender o
pensamento do Imperador e a autora da biografia, mostrei a ela algumas
anotações, grifos feitos a lápis em diversas páginas e disse: Não entendo tudo
mas estou me esforçando, anotei algumas coisas de que gosto muito. Ela leu calmamente
alguns desses parágrafos grifados me encarou e disse: “Hoje você está dispensado
da minha aula, faço isso somente porque percebo que você está em excelente
companhia.”
Até hoje fico emocionado com essas palavras. Confesso que já
reli Memórias de Adriano três vezes e em tempos diferentes da minha vida, assim
como também o faço com O Pequeno Príncipe, e, guardadas as devidas proporções,
aprendo muito tanto com um como com o outro. E o mais interessante desse livro
é que a cada leitura acabo fazendo novos grifos. Reza a lenda que Marguerite
Yourcenar (1903-1987) levou vinte e sete anos para escrevê-lo, sua conclusão
consumiu infindáveis horas de pesquisa, diversos manuscritos foram por ela destruídos,
interrompidos para pesquisas mais profundas e inúmeras crises de desânimo. Nas
horas de desencorajamento diante da grandeza do processo ela visitava museus,
passava horas completamente perdida em bibliotecas e sofria muito pela obra
inacabada. Anotava coisas, escrevia, reescrevia, recolhia dados, buscava
conhecimento para compreender e absorver a essência da personalidade do
Imperador Adriano.
O resultado disso foi a publicação de uma das mais
fascinantes obras do século XX, escrita na primeira pessoa, com um salto de
dezoito séculos sobre o tempo, a biografia romanceada de Adriano reconstrói não
só a ambientação física, política, social e cultural do seu tempo, mas também a
faceta psicológica de um grande imperador romano. O livro foi publicado em
1951, mas só em 1980, quando Marguerite foi eleita para ocupar a cadeira de
Roger Caillois na Academia Francesa de Letras, as editoras nacionais deram a
devida atenção a essa escritora que já tinha vinte e cinco livros publicados.
Memórias de Adriano é um livro clássico, daqueles que você encontra
em qualquer lista de livros que você deve ler antes de morrer, mas não é um
livro fácil, há de se ter concentração, paciência e perseverança. Aquele que
perseverar será brindado com palavras inesquecíveis como essas:
“Quantas vezes, tendo-me levantado muito cedo para ler ou
estudar, eu próprio coloquei em ordem as almofadas amassadas e os lençóis
amarrotados, evidências quase obscenas nos nossos encontros com o nada, provas
de que a cada noite deixamos de existir...”
Uma nota aqui se faz necessária, não vou abandonar o
exemplar da minha juventude, 5ª edição. Abandonarei uma versão em capa dura que
comprei há algum tempo, mas tive o cuidado de transcrever todos os grifos que
fiz no meu até a data de hoje.
Cidade do abandono: Salvador/BA
Local: Caixa Cultural - Exposição Desing Brasileiro - Moderno & Contemporâneo
Data: 13/09/2014